quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Constitucionalização do direito privado

O direito privado, no âmbito  da doutrina pátria, voltou a ser objeto de novas discussões,  quando o Senado Federal votou  o  Projeto do Código Civil de 2002.  Pois com a elaboração de um novo Código Civil,  suscitou-se também um  questionamento, no sentido de querer  saber  se ainda  fazia  sentido  defender a existência de um sistema de direito privado, ou seja, de um conjunto de normas  estruturadas de forma compreensível  e suscetível de assimilação a partir de um corpus codificado.

Percebe-se com tal indagação, que ao ser vislumbrada a ideia de um  diploma normativo tendo como parâmetro as suas cláusulas gerais,  surgia a questão de saber  se poderia afirmar que  o sistema de  direito privado estaria  realmente apto  a absorver os casos  que a experiência social dinâmica e contínua  apresenta,  sem que houvesse  a  necessidade da atividade legislativa, para a criação de outros mecanismos  com a finalidade de atender às novas demandas,  a   oferecer soluções  aos novos problemas.

Para melhor compreender o sistema de direito privado e suas articulações com  o texto constitucional e outras fontes jurídicas,  e tomando como ponto de partida as considerações acima elencadas,  é importante lembrar  que o  Direito Civil desde o surgimento da chamada “Codificação”, passou por significativas alterações do ponto de vista axiológico.  Ao longo dessa evolução, ocorreu a consolidação de normas privadas que antes encontravam-se de forma esparsa e/ou com quase nenhuma sistematização.  Já na cultura pós-moderna, verifica-se que o Direito passou efetivamente a tutelar direitos sociais  ao valorizar muito mais o “ser” do que o “ter”.

Ao deixar de lado aquela dimensão essencialmente patrimonialista, o Direito  passou a ser visto  como instrumento solidarista. Mas isso não significa dizer que o Direito Privado tenha se transformado  em um  direito meramente social, na verdade, o que aconteceu, foi que aquela clássica distinção público-privado atualmente adquiriu outros contornos,  sobretudo, com a promulgação de diversas  Constituições pelo mundo,   que têm  entre os seus fundamentos basilares, a proteção   social e  a valorização da própria dignidade da pessoa humana (PEDRO, 2011).

Ainda nesse sentido, cabe ressaltar que com o declínio da era das “Codificações”,  a partir dos anos 30 no Brasil, inicia-se um período de forte intervenção  legislativa  que culminou  na fragmentação do  sistema de  direito privado baseado  apenas  no Código Civil. Essa fragmentação aconteceu  porque começaram a surgir microssistemas legislativos independentes  e à margem do Código Civil.  E foi nesse contexto, e na  vigência de um Estado Social, que as Constituições além de passarem a disciplinar as relações de ordem econômica e privada, também se tornaram  o centro normativo unificador e irradiador de todo o ordenamento jurídico-privado.

A respeito da  incidência das normas constitucionais sobre o  direito privado,  reiteramos o posicionamento de  (SARMENTO, 2003). Segundo ele,  essa incidência ocorre  de diversas maneiras.  Primeiramente porque  a Constituição  representa um limite para o legislador privado, ou seja, será  inconstitucional qualquer  norma editada em  contrariedade a ela. Em segundo lugar,  com a  crise do Estado Social e  com o renascimento dos  valores individualistas do passado, hoje difundidos com entusiasmo  pelo pensamento neoliberal,  aparece  o risco de retrocessos na legislação privada,  o que vai  na contramão do  caráter social e solidário da CR/88.  Desse modo, em ambos  os casos, a Constituição  cumpre função limitadora e  vinculativa  na disciplina das relações privadas.

As muitas alterações pelas quais passou o direito privado, certamente foram assentadas em ideais jusfilosóficos centrados  no objetivo de estruturar o  Estado,  e  na intenção   de  maior  aproximação  ou  distanciamento  do  liberalismo econômico ou em políticas  voltadas para  as questões  sociais, transferindo assim o Estado de Direito para o Estado Social.

A  inclusão de cláusulas abertas no sistema normativo e  a vinculação   constitucional, permitem aos profissionais do Direito, interpretações mais compatíveis com o  senso de justiça lapidado pela  sociedade  em   certos  momentos da história, e até mesmo em observância ao  conjunto de valores morais de uma determinada região ou  segmento social.

Com  a  constitucionalização  do  direito  privado,  os  postulados: eticidade, socialidade e operabilidade podem ser perfeitamente aplicados pelos operadores do direito e decididos pelo Judiciário em harmonia com outras fontes  normativas,  fazendo uso de uma hermenêutica  totalmente  guiada por ditames constitucionais.

Numa sociedade marcadamente desigual e injusta como a brasileira,  as relações privadas que nela se  estabelecem  inevitavelmente  possuem  acentuada disparidade e  opressão.  Nesse cenário, a violação dos direitos humanos,  não resulta  exclusivamente da ação ou omissão do  Estado  e de  seus agentes, mas também  dos mais diferentes  atores sociais, como a  própria família, as empresas, o mercado, e segmentos da sociedade civil.

Assim sendo,  repensar o sistema de direito privado de modo a adequá-lo  aos postulados constitucionais, significa afirmar a força da Constituição como poderoso instrumento  de emancipação dos menos favorecidos e de  consolidação das conquistas sociais. É defender o fortalecimento e ampliação da normatividade constitucional no âmbito do direito privado, cada vez mais centrada no respeito e valorização da dignidade humana.


Postado por Antonio de Pádua.

REFERÊNCIAS

PEDRO, Fábio Anderson de Freitas. O direito privado à luz da  supremacia da constituição. In: R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011.

SARMENTO, Daniel. A normatividade da constituição  e a constitucionalização do direito privado. In:  Revista da EMERJ, v. 6, n. 23, 2003.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Aspectos jurisdicionais da onerosidade excessiva nas relações consumeristas

Os Tribunais pátrios sempre reconheceram o entendimento da Doutrina em relação à Teoria da Imprevisão, embora suas posições tenham revelado um certo rigor no que diz respeito a sua aplicabilidade. Em razão disso, é mister recordar que o Supremo Tribunal Federal em algum momento já decidiu que - a regra rebus sic stantibus não é contrária a texto expresso da lei nacional.

Nesse sentido, Azevedo (2009), menciona um importante julgado da 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, cujo Relator foi o então Desembargador Djaci Falcão, no qual asseverava como justificativa para aplicação da teoria da imprevisão, a necessidade de evento que venha alterar a situação inicial do contrato, devendo ser ele “excepcional, extraordinário, imprevisto e imprevisível, que modifique de modo sensível e chocante o ambiente em que se formou a voluntas contrahentium”, exigindo-se também a análise de cada caso “em si mesmo no tempo e no espaço sob o critério da eqüidade’’. Tal argumento comprova uma advertência da 5ª Turma do extinto Tribunal Federal de Recursos, segundo a qual o STF só admite a aplicação da teoria da imprevisão “em casos especialíssimos”.

Tais decisões evidenciadas servem apenas para ilustrar as inúmeras discussões que surgiram no âmbito da Doutrina  a respeito da problemática genérica e acadêmica relativa à resolução de contratos por onerosidade excessiva. Entretanto, já existe uma série de aspectos práticos considerados de grande relevância, atinentes à aplicação do artigo 478 do Código Civil, que ainda necessitam de uma análise mais sistemática e objetiva pela Doutrina (SANCHES, 2005).

Nelson Borges pondera que, na jurisprudência pátria, o requisito de elevada vantagem do credor tem sido atenuado: “os nossos juízes e tribunais têm concedido o benefício revisional – quando fundado em evento imprevisível – sem levar em conta a exigência da extrema vantagem para o credor. O acréscimo é altamente discutível pelo seu iter subjetivo, nem sempre presentes em situações anômalas, que sancionam a aplicação da doutrina, sendo irrelevante que a parte credora esteja na iminência de auferir a extrema vantagem. Melhor teria sido apenas a referência ao termo “vantagem”, situação que ocorre na maioria das vezes”(BORGES, 2002).

Importante ainda é destacar que na apelação Cível n° 652.006-00/0, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo através de sua 10ª Câmara, o Desembargador Irineu Pedrotti advertiu que: “Não há critério objetivo definindo o que seja a onerosidade excessiva, de onde remete-se ao prudente arbítrio do Magistrado a formação da sua convicção sobre eventual ocorrência”(LEX, 2003).

A seguir serão elencadas algumas decisões jurisprudenciais, nas quais foram verificadas a existência de onerosidade excessiva, que uma vez sofrida por um dos contratantes, acabou tornando a execução contratual insuportável para ele.

STJ. Plano de saúde. Consumidor. Contrato de seguro saúde. Cláusula abusiva. Onerosidade excessiva. Submissão do segurado à cirurgia que se desdobrou em eventos alegadamente não cobertos pela apólice. Necessidade de adaptação a nova cobertura, com valores maiores. Segurado e familiares que são levados a assinar aditivo contratual durante o ato cirúrgico. (Doc. LEGJUR 103.1674.7548.2000, CDC, art. 51).
O objetivo do plano de saúde é garantir a proteção do assegurado contra acontecimento futuro e incerto. Quando há necessidade de salvar-se, o Código Civil colocou o estado de perigo como efeito de negócio jurídico. Sendo que a exigência de seus familiares para assinar outro contrato, configura dolo de aproveitamento da outra parte, “obrigação excessivamente onerosa”. Contudo, o art. 51, do Código de Defesa do Consumidor, determina que a onerosidade excessiva será nula quando se tratar de desvantagem do consumidor perante pagamento de algo do qual já gozava. Os familiares, nesse caso, devem, todavia, demonstrar a ocorrência de onerosidade excessiva para que o negócio jurídico seja anulado, pois a assinatura de um novo contrato torna-se desnecessária, e abusiva seria a cláusula contratual, quando ao assegurado, só interessa o bom êxito do procedimento cirúrgico, pois tal fato agravaria a situação de aflição psicológica e de angústia no espírito do mesmo, uma vez que no momento, de pedir a autorização da seguradora, encontrava-se emocionalmente abalado, e com a saúde debilitada.

2º TACiv.SP. Contrato. Consumidor. Teoria da imprevisão. Onerosidade excessiva. Cláusula rebus sic stantibus. Considerações sobre tema. CDC, art. 6º, V. CCB/2002, arts. 478 e 480. ((Doc. LEGJUR 103.1674.7362.0900). Essa decisão trata da cláusula rebus sic stantibus que figura a Teoria da Imprevisão, a qual ainda é muito criticada e até rejeitada pelo absolutismo do pacta sunt servanda. O primeiro ponto primordial desse julgado é a incidência de onerosidade excessiva, que são cláusulas contratuais que estabelecem prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. O segundo ponto é a ausência de previsibilidade que pode ser tanto objetiva como subjetiva, a objetiva é a falta de previsão que pode ser feita pelo homem médio, normal, pessoal do agente, como por exemplo, escolaridade, formação, inteligência, etc.

STJ. Arrendamento mercantil. Leasing. Ação civil pública. Maxidesvalorização do real. Variação cambial. Onerosidade excessiva. Consequências que devem ser suportadas de forma equitativa pelas partes. Precedentes do STJ. Lei 7.347/85, art. 1º. (Doc. LEGJUR 103.1674.7497.6100).
Nos contratos de arrendamento mercantil, o arrendatário ao selecionar o bem deve anuir as dividas das parcelas de forma típica, entretanto em determinados casos tais parcelas se tornam excessivas, ainda mais quando se tratar de parcelas que tiveram como indexador o dólar norte-americano. Tomando como base tal situação, “o MPDFT ajuizou Ação Civil Pública, em 1999, contra a América do Sul Leasing S/A Arrendamento Mercantil, sucedida posteriormente pela ABN AMRO, pedindo a anulação da cláusula que previa a indexação das parcelas dos contratos de leasing pela variação cambial do dólar” (MELO, 2010).   
Na época, o Governo Federal mantinha a moeda nacional estável em relação ao dólar norte-americano, o que atraiu vários consumidores a celebrar contratos indexados à variação daquela moeda (MELO, 2010). Nesse processo tanto na primeira instância, quanto na superior, o parecer foi o mesmo, pois nesse tipo de contrato o indexador a ser utilizado não seria mais o americano, por estar prejudicando o consumidor, e sim o agora o índice nacional de preços aos consumidores.

STJ Súmula nº 297 - 12/05/2004 - DJ 09.09.2004. O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.  Código de Defesa do Consumidor - Instituições Financeiras – Aplicação.  Revisão Contratual “exofficio” de contratos bancários. A revisão contratual ‘exofficio’, por quanto não se cogita sob argumentação de ocorrência de vício de consentimento, toma-se para tanto, como eixo a aplicação da teoria da imprevisão (Rebus sic standibus).

Contudo nos casos de revisão contratual observa-se também sob sua condução as relações contratuais bancárias, tomando como base o art.478 do Código Civil vigente, atentando não para sua resolução, mas sim no que concerne a sua revisão. Ressalve-se ainda que a mesma decisão vem fundamentada no art.3º, §2º do CDC , a saber:
Art. 3º - Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1º - Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2º - Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Destarte, conforme  mencionado, tem-se a revisão contratual quando a Súmula acima citada é aplicada como um caráter fundamental arbitrado a favor do povo brasileiro quando referente aos contratos bancários, mesmo havendo decisões posteriores em conflito com essa vertigem majoritária, tendo elas grande peso em função do caráter obrigatório do contrato, desde que não se comprove a onerosidade excessiva.


Postado por Antonio de Pádua.


AZEVEDO, Álvaro Villaça. Inaplicabilidade da teoria da imprevisão e onerosidade excessiva na extinção dos contratos. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 63, 01/04/2009.Disponível em:< http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5890>. Acesso em 12 Maio 2011. 
BORGES, Nelson, in “A Teoria da Imprevisão no Direito Civil e no Processo Civil”.  p. 323, 2002.
LEX, Jurisprudência dos Tribunais de Alçada Civil de São Paulo. vol. 201, p. 483, 2003.
SANCHES, Sydney. Resolução de contratos por onerosidade excessiva. Outubro, 2005. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2005-out-25/resolucao_contratos_onerosidade_excessiva>. Acesso em: 20 Maio 2011.
MELO, Gilberto. Turma mantém decisão sobre contratos de leasing ajustados por variação cambial. Disponível em: < http://gilbertomelo.com.br/jurisprudencias-e-noticias/46/2608-turma-mantem-decisao-sobre-contratos-de-leasing-ajustados-por-variacao-cambial>. Acesso em: 18 Maio 2011.