O direito privado, no âmbito da doutrina pátria, voltou a ser objeto de novas discussões, quando o Senado Federal votou o Projeto do Código Civil de 2002. Pois com a elaboração de um novo Código Civil, suscitou-se também um questionamento, no sentido de querer saber se ainda fazia sentido defender a existência de um sistema de direito privado, ou seja, de um conjunto de normas estruturadas de forma compreensível e suscetível de assimilação a partir de um corpus codificado.
Percebe-se com tal indagação, que ao ser vislumbrada a ideia de um diploma normativo tendo como parâmetro as suas cláusulas gerais, surgia a questão de saber se poderia afirmar que o sistema de direito privado estaria realmente apto a absorver os casos que a experiência social dinâmica e contínua apresenta, sem que houvesse a necessidade da atividade legislativa, para a criação de outros mecanismos com a finalidade de atender às novas demandas, a oferecer soluções aos novos problemas.
Para melhor compreender o sistema de direito privado e suas articulações com o texto constitucional e outras fontes jurídicas, e tomando como ponto de partida as considerações acima elencadas, é importante lembrar que o Direito Civil desde o surgimento da chamada “Codificação”, passou por significativas alterações do ponto de vista axiológico. Ao longo dessa evolução, ocorreu a consolidação de normas privadas que antes encontravam-se de forma esparsa e/ou com quase nenhuma sistematização. Já na cultura pós-moderna, verifica-se que o Direito passou efetivamente a tutelar direitos sociais ao valorizar muito mais o “ser” do que o “ter”.
Ao deixar de lado aquela dimensão essencialmente patrimonialista, o Direito passou a ser visto como instrumento solidarista. Mas isso não significa dizer que o Direito Privado tenha se transformado em um direito meramente social, na verdade, o que aconteceu, foi que aquela clássica distinção público-privado atualmente adquiriu outros contornos, sobretudo, com a promulgação de diversas Constituições pelo mundo, que têm entre os seus fundamentos basilares, a proteção social e a valorização da própria dignidade da pessoa humana (PEDRO, 2011).
Ainda nesse sentido, cabe ressaltar que com o declínio da era das “Codificações”, a partir dos anos 30 no Brasil, inicia-se um período de forte intervenção legislativa que culminou na fragmentação do sistema de direito privado baseado apenas no Código Civil. Essa fragmentação aconteceu porque começaram a surgir microssistemas legislativos independentes e à margem do Código Civil. E foi nesse contexto, e na vigência de um Estado Social, que as Constituições além de passarem a disciplinar as relações de ordem econômica e privada, também se tornaram o centro normativo unificador e irradiador de todo o ordenamento jurídico-privado.
A respeito da incidência das normas constitucionais sobre o direito privado, reiteramos o posicionamento de (SARMENTO, 2003). Segundo ele, essa incidência ocorre de diversas maneiras. Primeiramente porque a Constituição representa um limite para o legislador privado, ou seja, será inconstitucional qualquer norma editada em contrariedade a ela. Em segundo lugar, com a crise do Estado Social e com o renascimento dos valores individualistas do passado, hoje difundidos com entusiasmo pelo pensamento neoliberal, aparece o risco de retrocessos na legislação privada, o que vai na contramão do caráter social e solidário da CR/88. Desse modo, em ambos os casos, a Constituição cumpre função limitadora e vinculativa na disciplina das relações privadas.
As muitas alterações pelas quais passou o direito privado, certamente foram assentadas em ideais jusfilosóficos centrados no objetivo de estruturar o Estado, e na intenção de maior aproximação ou distanciamento do liberalismo econômico ou em políticas voltadas para as questões sociais, transferindo assim o Estado de Direito para o Estado Social.
A inclusão de cláusulas abertas no sistema normativo e a vinculação constitucional, permitem aos profissionais do Direito, interpretações mais compatíveis com o senso de justiça lapidado pela sociedade em certos momentos da história, e até mesmo em observância ao conjunto de valores morais de uma determinada região ou segmento social.
Com a constitucionalização do direito privado, os postulados: eticidade, socialidade e operabilidade podem ser perfeitamente aplicados pelos operadores do direito e decididos pelo Judiciário em harmonia com outras fontes normativas, fazendo uso de uma hermenêutica totalmente guiada por ditames constitucionais.
Numa sociedade marcadamente desigual e injusta como a brasileira, as relações privadas que nela se estabelecem inevitavelmente possuem acentuada disparidade e opressão. Nesse cenário, a violação dos direitos humanos, não resulta exclusivamente da ação ou omissão do Estado e de seus agentes, mas também dos mais diferentes atores sociais, como a própria família, as empresas, o mercado, e segmentos da sociedade civil.
Assim sendo, repensar o sistema de direito privado de modo a adequá-lo aos postulados constitucionais, significa afirmar a força da Constituição como poderoso instrumento de emancipação dos menos favorecidos e de consolidação das conquistas sociais. É defender o fortalecimento e ampliação da normatividade constitucional no âmbito do direito privado, cada vez mais centrada no respeito e valorização da dignidade humana.
Postado por Antonio de Pádua.
REFERÊNCIAS
PEDRO, Fábio Anderson de Freitas. O direito privado à luz da supremacia da constituição. In: R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011.
SARMENTO, Daniel. A normatividade da constituição e a constitucionalização do direito privado. In: Revista da EMERJ, v. 6, n. 23, 2003.