terça-feira, 31 de julho de 2012

A publicização do Direito Privado e sua incidência no âmbito das relações consumeiristas

A clássica divisão romana do direito em público e privado, parece não mais corresponder ao atual cenário jurídico e nem satisfazer as complexas relações apresentadas pela sociedade moderna. Para alguns juristas, essa bipartição tradicional, na prática não tem grande relevância, uma vez que o Direito deve ser compreendido na sua totalidade. Hodiernamente, entre essa famosa classificação, verifica-se o Direito misto (teoria mista), pois este abrange normas tanto do direito público quanto do privado, tutelando ambos.

Dessa forma, é possível a atuação de entidades de direito público como particulares, devendo as mesmas serem tratadas como tais, se submetendo, portanto, à legislação do direito privado. Situação similar ocorre no âmbito privado, onde as instituições estatais podem exercer suas vontades, diminuindo a autonomia do particular, constituindo preceitos de ordem pública, entretanto, devendo ser concebidas como relações privadas.

Antes de conceituar esse fenômeno da publicização do direito privado, é necessário observar que o mesmo não pode ser confundido com a sua própria constitucionalização. Embora, as constituições contemporâneas, influenciadas pela Constituição de Weimar, sejam revestidas de diversas normas acerca das relações privadas, reduzindo a atuação dos particulares.

No entanto, por publicização do direito privado, entende-se como um processo de intervenção do Estado, cada vez mais crescente, cuja finalidade é assegurar o direito dos indivíduos que numa relação jurídica, se encontram em condições de vulnerabilidade. A esse respeito, Netto Lôbo esclarece que: “Durante muito tempo, cogitou-se de publicização do direito civil, que para muitos teria o mesmo significado de constitucionalização. Todavia, são situações distintas.  A denominada publicização compreende o processo de crescente intervenção estatal, especialmente no âmbito do legislativo, característica do Estado Social do Século XX. Tem-se a redução do espaço da autonomia privada, para a garantia da tutela jurídica dos mais fracos. A ação intervencionista ou dirigista do legislador terminou por subtrair do Código Civil matérias inteiras, em alguns casos transformadas em ramos autônomos, como o direito do trabalho, o direito agrário, o direito das águas, o direito da habitação, o direito de locação de móveis urbanos, o estatuto da criança e do adolescente, os direitos autorais e o direito do consumidor.” (NETTO LÔBO, 2011, p. 1).

Certo é que o direito privado, inegavelmente assumiu uma nova roupagem. O intervencionismo estatal nas relações privadas se revela na defesa dos mais frágeis, como uma decorrência das exigências atuais da função do Estado perante a sociedade.  A publicização do direito privado, na concepção de alguns juristas, também pode ser substituída por dirigismo contratual, conforme evidencia José Lourenço: “Além das restrições oriundas da imperatividade das normas jurídicas, há também os limites à autonomia da vontade oriundos do fenômeno do dirigismo contratual, ou seja, a intervenção estatal na economia dos negócios de qualquer espécie. O dirigismo suentende que, se os contratantes pactuassem os negócios jurídicos com total liberdade, sem que o poder estatal pudesse intervir para mitigar o princípio pacta sun servanda – mesmo quando uma das partes ficasse em completa ruína – a ordem jurídica estaria assegurando apenas a igualdade perante a lei.” (LOURENÇO, 2001, p. 20).

A interferência do Estado nas relações privadas ao longo do tempo é algo inegável e cada vez mais intenso. O que se observa na atualidade, são entes públicos atuando sob a orientação e proteção da legislação privada, bem como instituições privadas desempenhando funções que do ponto de vista legal, são tipicamente estatais.

O Estado a partir do final do século XX e início do século XXI volta novamente a regular a economia e interferir no paradigma do livre-mercado em face da crise dos direitos subjetivos enquanto direitos diretamente e tão-somente privados. Tais direitos passaram a ser confrontados com um modelo publicista, culminando, dessa forma, numa maior complexização das relações técnicas, econômicas, e consequentemente, jurídicas.

A globalização do mercado impõe desafios urgentes ao Estado. De acordo com (LIMA; OLIVEIRA 2009), o âmbito do protecionismo deve ser ampliado na dimensão da estrutura do complexo e extremamente competitivo mercado, onde a corrida pelo crescimento do segmento do consumo aconteça através da respeitabilidade do ser humano.

A Constituição Federal de 1988 prevê a democratização e a igualdade, como características que também favorecem esse crescimento da participação interventiva do Estado com a finalidade de garantir essa equalização esboçada constitucionalmente.

No caso brasileiro, optamos por uma Constituição para a construção de um Estado de Direito Democrático. Toda ação na economia que possa vir a ultrapassar essas fronteiras, é uma ação conspiratória contra a democracia. Daí a necessidade, não de domar os mercados, mas de possibilitar a atuação deles nos limites da lei. E dentro dos limites da lei, devem estar sujeitos ao controle final do Poder Judiciário. A discussão do tema acontece em um momento oportuno, principalmente quando se retoma a questão do papel das chamadas agências reguladoras. Voltemos à discussão: o Estado há que ser o senhor absoluto, atuando sobre todas as coisas, ou o Estado há que ser apenas uma organização da sociedade, para viabilizar, num sistema de liberdade, o bem comum? Há quem diga que as exigências reguladoras não podem ser instituições absolutamente livres porque assim vão contrariar os interesses da sociedade.

Nesse sentido, menciona-se o direito do consumidor, que embora pertencente ao ramo do direito privado, reflete diretamente essa tendência do Estado de regular as relações jurídicas entre os particulares e da necessidade de uma regulamentação das relações de consumo a partir da admissão no direito positivo, no âmbito constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) e da tutela dos direitos do consumidor no mercado.

No entendimento de Lima e Oliveira Júnior (2009), constatou-se o reconhecimento da condição de vulnerabilidade (técnica, econômica, jurídica etc) a que o consumidor fica submetido nas relações de consumo. Portanto, entende-se como consumidor àquele destinatário final que faz uso das vantagens econômicas do bem ofertado e que na relação se apresenta em posição vulnerável. Entretanto, a definição de consumidor é bastante ampla, abrange sujeitos determináveis (relação de direta de consumo) ou não (acidentados em sinistro são consumidores por força de responsabilidade objetiva do fornecedor).

A função reguladora do Estado revela-se como mecanismo de defesa preventivo, sistemático, contínuo do consumidor, com o objetivo de imprimir uma cultura mercadológica de conciliação das atividades de prestação de serviços aos ditames protecionistas consumeristas legais. Nesse sentido, o Direito Público criou mecanismos de regulação, a exemplo, do Ministério Público, que adquiriu amplas possibilidades investigatórias em relação ao consumo, inserindo-se nessa questão o poder de polícia dos PROCONS (Agência de Proteção e Defesa do Consumidor) que atuam em todo o Brasil, e dos SACS (serviços de atendimento ao consumidor), sendo tais mecanismos decorrentes desse modelo regulatório do publicista enquanto dimensão da juridicidade normativa e tuteladores da dignidade da pessoa humana pelo Estado (LIMA; OLIVEIRA JÚNIOR, 2009).

No que se refere aos instrumentos, torna-se oportuno enfatizar ainda, que os mesmos advertem para a necessidade de aplicação das inovações elencadas pelo Código de Defesa do Consumidor, a partir de seus princípios: princípio da boa-fé (art. 4º, III, do CDC); princípio do equilíbrio (equivalência) contratual (art. 4º, III, do CDC); princípio da vedação de cláusulas abusivas (art. 51, do CDC); princípio da igualdade (art. 6º, II, do CDC e art. 5º, caput, da Constituição Federal, e princípio da transparência (art. 6º, II; 31 e 46 do CDC).

Por fim, a realidade fática de vulnerabilidade do consumidor no mercado resulta em uma relação jurídica vinculante entre proteção estatal e regulação do mercado. Diante dessa situação, o Estado resolveu instituir as agências de regulação da atividade econômica, dentre as quais, citem-se aqui a ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações), ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) e ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), sendo estas, exemplos de entidades administrativas criadas com assento na própria Carta Magna de 1988, em seu artigo 84, IV, como forma de proteção dos interesses privados dos consumidores como interesses dos entes públicos.

Postado por Antonio de Pádua.